Quando um país perde a vergonha de ser misógino

 

Arte de Daniela Muller
Retirado do Portal Catarinas (link no final do artigo)

Por Bruna Vasques*

     Hoje eu preciso sair um pouco do tema da Imersa S/A. Por mais que a gente tente se concentrar um pouco nas coisas boas que a arte e a cultura nos proporcionam e levar isso aos nossos leitores, há momentos em que fica impossível continuar. Não que fechemos os olhos ao que de tenebroso anda acontecendo no Brasil, mas é uma escolha veicular coisas que nos trazem algum alento e que podem fazer o mesmo a quem nos lê. Tenho questionado, inclusive, se algumas de nossas atitudes na internet não contribuem, mesmo que sem querer, para a tática de cortina de fumaça desse presidente que aí está. Esse artigo é uma tentativa de fazer o contrário, descortinar uma de suas muitas características inaceitáveis: a misogina. Este texto é um rechaço.


Um jogador de futebol, condenado em primeira instância na Itália por estupro retorna ao Brasil e alega que o único erro que cometeu foi ter traído a mulher e agradece o apoio do presidente.

O Supremo Tribunal Federal cruza os braços diante da absolvição por parte de júri popular de um homem acusado de tentativa de feminicídio. O argumento ressuscitado foi a legítima defesa da honra, aquele que as feministas brasileiras lutaram para enterrar nos idos dos anos 70.

André Aranha foi absolvido da acusação de estupro levada adiante por Mariana Ferrer. Neste caso, o que fica realmente patente é a misoginia do advogado daquele que estava sendo acusado, uma postura muito parecida com a postura do advogado de Doca Street, assassino de Ângela Diniz. Dois casos com quarenta anos de diferença e a tática é praticamente a mesma: desqualificar a vítima para conseguir a absolvição do homem acusado. No caso de Ângela Diniz, o argumento foi legítima defesa da honra. Mariana Ferrer, por sua vez, teve que ouvir as seguintes palavras do advogado de defesa de Aranha:

"(...) E também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você. [...]. Teu showzinho tu vai dar lá no Instagram pra ganhar mais seguidores. Tu vive disso. [...]. É o seu ganha pão a desgraça dos outros. Manipular essa história de virgem. [...]. Não adianta vir com esse teu choro simulado, falso, e essa lágrima de crocodilo!" (extraído do artigo de Adiel Pereira Amaral para o Portal JusBrasil, link nas referências)

Aqui eu quero voltar um pouco para agosto deste ano quando o Ministério Público Federal entrou com uma Ação Civil pedindo uma indenização de 20 milhões de reais do governo por proferir discursos misóginos. Os acusados: Jair Bolsonaro, Damares Alves, Sergio Moro, Ernesto Araújo e Paulo Guedes.

Claro que a misoginia é anterior ao governo Bolsonaro. Mas eu acredito que seja a primeira vez na história que um governo tenha sido denunciado formalmente por conduta misógina. E isso merece um grande destaque e divulgação e pode nos dar uma certa esperança e provar que o desacato de mulheres e outras minorias surtem efeitos. Desacato aqui é o contrário de acatar, de aceitar e de se submeter.

Em 2018, as vésperas da eleição, os grandes atos de mulheres no Brasil passaram a mensagem: “Não queremos um governo misógino! ”. Infelizmente, em tempos de polarização, fake news e tudo o mais, a mensagem não foi entendida. O que se estava dizendo é que nós não queríamos um governo misógino porque ele é perigoso para nós e para outras minorias.

Eu me lembro, também às vésperas da eleição, de estar conversando com a minha mãe sobre o discurso de Bolsonaro. Eu dizia a ela que tal discurso era perigoso porque era licencioso com o ódio, a intolerância, a violência. Eu tinha uma desconfiança, hoje tenho uma comprovação. Ainda assim, não pude sequer imaginar que coisas como as elencadas nos primeiros parágrafos deste texto fossem acontecer ainda que esteja tudo interligado. Eu só consegui chegar até uma parte dessa “equação medonha”: que haveria mais violência de todos os tipos contra as mulheres e minorias. Mas não podia imaginar que advogados fossem ser mais misóginos, que juízes iam ser condescendentes, que um júri popular iria acatar legítima defesa da honra em pleno 2020. Ainda que seja 2020.

É claro que não estou dizendo que todos os juízes são misóginos, que todo o júri se convença com argumentos insólitos, que todos os juízes sejam condescendentes com agressores e assassinos de mulheres. Mas se a gente lembrar do lema feminista “Nenhuma a menos!”, a gente entende que apenas um caso é o suficiente para que fiquemos atentas, preocupadas, temerosas.

Eu queria muito estar errada. Muito mesmo. Mas vejam o absurdo que é um jogador de futebol voltar ao Brasil depois de ser condenado em primeira instância por estupro e se sentir seguro por ter o respaldo do presidente. E fazer declarações públicas como se o feminismo fosse o problema e não o estupro! E não contente fazer colocações transfóbicas. Sendo que suas conversas foram publicadas e é clara a sua participação em um crime de estupro.

Entendo que não é possível estabelecer uma relação estreita de causa e efeito entre governo Bolsonaro e a misoginia cada vez maior na sociedade brasileira. Por outro lado, tampouco é possível afirmar que tais acontecimentos (e tantos outros dos quais não ficamos sabendo porque não se tornam manchetes) não possuem relação alguma. É preciso pensar a respeito. A coisa é séria: nós estamos falando de estupro e feminicídio. E essa é uma parcela do problema, apenas. Porque sabemos também qual é o discurso do governo brasileiro sobre as pessoas LGBTQIA+, negros, quilombolas e indígenas.

Já é sabido que algumas narrativas são mais poderosas que outras. Que as palavras de uns valem mais do que a de outros. Que o presidente será mais ouvido do que eu nesse meu simples texto, que seu mau exemplo será seguido. Mas não são só palavras: há medidas misóginas como a decisão de demitir funcionários do Ministério da Saúde que redigiram uma nota técnica sobre a saúde da mulher na pandemia. Não havia nada que contradissesse a Constituição, mas foi mencionar interrupção de gravidez que o presidente leu “legalização do aborto” sendo que o aborto é legalizado em alguns casos. Talvez seja forçado afirmar que o sujeito se garante  o “direito” de não usar máscara contrariando todas as recomendações, mas a mulher não pode abortar de jeito nenhum, nem mesmo em meio a uma perigosa pandemia. A liberdade individual não se estende aos úteros. No Brasil, nossos úteros são tutelados.

 Apesar de não estarmos vivendo em uma ditadura propriamente dita, estamos retrocedendo e sendo esmagades por posturas autoritárias, vendidas, corruptas, mentirosas. É um alento que haja denúncias, mas algumas sentenças não eram mais para serem proferidas. Não muito tempo atrás, alguém pensaria duas vezes antes de falar. Porque teria vergonha. Hoje nem vergonha há mais. Há orgulho, até.

Resta-nos o desacato. E cada um desacata à sua maneira. Eu, isolada na minha casa, preocupada comigo e com outros em meio à pandemia, desacato escrevendo este texto.



Referências e links para saber mais sobre o assunto:

Sobre a Ação Civil do Ministério Público Federal e o ataque à saúde da mulher na pandemia (o link do inteiro teor da ação está disponível na matéria):  https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-12/a-misoginia-do-governo-bolsonaro-vai-parar-na-justica.html

Sobre a insinuação de Bolsonaro a respeito da jornalista Patricia Campos Mello da Folha:https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-18/jair-bolsonaro-retoma-credencial-machista-com-insinuacao-sexual-contra-jornalista.html 

A repórter Carla Jimenez escreve sobre a misoginia do presidente e seu governo em um país em que a maioria da população é feminina e um dos países que mais mata mulheres no mundo:https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-18/nunca-um-presidente-foi-tao-vulgar-com-uma-mulher-espere-o-efeito-bumerangue.html

Lista com as declarações misóginas, homofóbicas e de cunho sexual proferidas pelo presidente (com vídeos): https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/treze-frases-de-bolsonaro-de-natureza-sexual-e-machista/

Mais sobre a misoginia do governo brasileiro: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2020/08/bolsonaro-e-a-misoginia-como-politica-publica.shtml

            Sobre o estupro como crime político: https://operamundi.uol.com.br/samuel/38798/a-eterna-misoginia-de-bolsonaro-e-o-estupro-como-manutencao-do-poder

 Mais a respeito da Ação Civil do Ministério Público Federal: https://www.socialismocriativo.com.br/mpf-quer-multa-de-r-20-milhoes-por-16-ofensas-de-bolsonaro-e-ministros-contra-mulheres/

    Sobre o recente caso em que a legítima defesa da honra foi utilizada para absolver acusado de tentativa de feminicídio: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/legitima-defesa-da-honra-o-poder-simbolico-da-decisao-do-stf/

Sobre a absolvição de André Aranha da acusação de estupro: https://adielpereiraamaral95.jusbrasil.com.br/artigos/1115712665/caso-mariana-ferrer-os-pontos-negativos-da-internet-e-a-tese-do-estupro-culposo?ref=feed 

Sobre as gravações das conversas entre o jogador Robinho e seus amigos que o implicam em crime de estupro: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/as-gravacoes-do-caso-robinho-na-justica-italiana-a-mulher-estava-completamente-bebada.ghtml

Reflexão do Portal Catarinas sobre a misoginia de Bolsonaro a partir da situação esdrúxula, ocorrida o ano passado, em que o presidente ridicularizou Brigitte Macron: https://catarinas.info/a-guerra-contra-as-mulheres-no-brasil-de-bolsonaro/



* Bruna Vasques é cientista social e pedagoga e anseia pelo fim deste governo. 

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