A PERSONAGEM BONNIE DE THE END OF THE F***ING WORLD e porque ela diz tanto sobre nós (CONTEM SPOILERS)
Por: Bruna Vasquez*
The End of The F***ing World é uma
série que nos fala sobre os impactos dos relacionamentos em nossa constituição
como pessoas. Por mais que as situações sejam absurdas e os personagens
caricatos, o que assombra é a verdade embutida nas suas entrelinhas. O resumo
é: a falta de amor, o racismo, a violência de gênero e as relações de poder têm
impacto na nossa saúde mental e na maneira como desenvolvemos as relações.
Não vou nem comentar as experiências
dos personagens James e Alyssa em seu âmbito familiar. Vou me deter em Bonnie,
cuja experiência familiar e de classe social, além da questão da etnia e de
gênero se intercalam.
Bonnie, ao que tudo indica, nasce
sem ter sido planejada. Ela mesma nos conta a sua história: a mãe não pode
estudar em decorrência de seu nascimento e projeta o sonho de estudar em
Bonnie. Nota-se a mãe controladora, exigente, conservadora e rígida, pouco
afetuosa, pouco compreensiva. O pai, mais omisso, tem que dançar conforme os
passos da mãe. Em uma cena muito ilustrativa, os três estão fazendo uma refeição
– não lembro o menu – o pai reclama da repetição do cardápio, a mãe justifica
dizendo que é bom para os neurônios: todo o esforço, sem afeto, para que Bonnie
ingresse na universidade. Aí o pai já dá indícios de esgotamento da situação de
extremo controle por parte da mãe. Isso o leva a abandonar as duas: a figura
masculina sai da vida de Bonnie e sua mãe, deprimida, começa a não ligar tanto
para o êxito acadêmico de Bonnie: há uma cena em que ela mente ao dizer que só
tirou 10 na escola, sua mãe nem pede para checar as notas.
O racismo também se faz presente na
vida de Bonnie. Ao ser humilhada por uma garota caucasiana, ela se vinga
cortando a trança da menina. Acho que aí podemos ver, pela primeira vez, a
garota fria que Bonnie se tornou. Ela não sente remorso, até pede para ficar
com a trança.
Em outra cena, Bonnie tem que comer,
literalmente, um batom vermelho que a mãe encontra nas suas coisas. Batom
vermelho é coisa de puta, segundo a mãe. Ela precisa se concentrar nos estudos,
não agir e parecer como uma puta. Bonnie precisa conseguir o que a mãe não
conseguiu: ingressar na universidade.
Bonnie não consegue como estudante,
mas como trabalhadora da biblioteca. Ela começa a frequentar, clandestinamente,
as aulas de Filosofia. Descoberta pelo professor, autoconfiante, branco, mais
velho que ela, com prestígio, dinheiro, livro publicado, ela é recusada por
ele, por não ser aluna regular da universidade.
Ela se vinga, sujando com fezes o
pôster do livro do professor. Ele a confronta, ela não baixa a guarda. Ele
propõe: pode frequentar suas aulas se tomar um drinque com ele uma vez por
semana. Bonnie interpreta como interesse de um cara branco, cisgênero,
heterossexual, mais velho, com dinheiro e prestígio o que é, na realidade, uma
chantagem emocional. Acontece que o público já sabe que o professor é um
sádico, um estuprador. Bonnie, não.
Bonnie vai até a casa do professor.
Ele a ludibria seguidamente. No primeiro encontro, quase que de cara, ele
sugere que tirem a roupa, ela aceita. Ali na sala, mesmo. Ele não a convida para irem até o quarto.
Isso fica evidente, posteriormente, quando Alyssa revela que quase foi
estuprada por ele quando ele a encontrou no quarto. Só não foi porque James o
matou. Bonnie fica surpresa: “Você viu o quarto dele?”.
Voltando ao primeiro encontro:
depois da relação sexual, depois que ele se satisfez determina que o encontro acabou. Ele decide
que o encontro acabou. Apesar de ele ter carro, ele não vai levar Bonnie para
casa, mas oferece dinheiro para o táxi. Bonnie está feliz, recebe o dinheiro de
bom grado.
Já nos próximos encontros vemos que
ele bate a porta tão logo ela sai da casa. Ela começa a fica incomodada, sente
que está acontecendo algo e o vigia. Em uma dessas vigilâncias, ela o vê com
uma moça branca. Eles estão discutindo, a moça sai desnorteada, para o público
é óbvio que ela também foi abusada. Para Bonnie, não. Ela confronta o
professor, ele se vitimiza, disse que a moça é mentirosa, vai sujar sua
reputação, o caluniar. Mal sabe ele o favor que Bonnie seria capaz de fazer em
nome desse “amor”.
Bonnie atropela a moça e vai para a
cadeia. Ele responde através da dedicatória em livro, que Bonnie recebeu na
prisão, a um questionamento que permeou o “relacionamento” deles: “Aconteceu.
Estou apaixonado”. Claro que não, ele estava agradecido por Bonnie ter
eliminado a ameaça que pairava sobre sua vida e sua reputação. Mas, o professor
pára de responder às suas cartas. É que James, vendo que ele ia estuprar
Alyssa, o mata. Bonnie fica sabendo do assassinato e quem foram seus autores. Começa a planejar sua vingança assim
que sai da prisão.
Na segunda temporada da série, as
histórias de Bonnie, James e Alyssa se intercalam e chega à conclusão do arco
narrativo de Bonnie. Ela, armada, ameaça Alyssa. James, que estava “stalkeando”
Alyssa percebe o risco que Alyssa corre e adentra a cena. Bonnie quer matar os
dois por terem matado seu grande amor. Ela não sabe que seu grande amor é um
estuprador sádico. Ela não tem repertório afetivo, os indícios estavam lá, mas
ela não vê. Não foi uma escolha, ela não soube diferenciar amor de abuso. Como
poderia?
Alyssa conta a verdade para Bonnie.
Ela quase foi estuprada por ele. Bonnie não acredita porque sempre consentiu em
ter relações. Ela não percebeu que foi coagida por um cara branco, cisgênero,
heterossexual, mais velho, com prestígio, dinheiro e tudo a seu favor. Ela não
percebeu a desigualdade de poder entre eles. O que era chantagem, ela entendeu
como interesse, o desejo de posse e ciúme que ele sentiu, ela entendeu como
amor, o que era apenas satisfação sexual e sujeição, ela entendeu como romance.
Novamente, como poderia ela saber? Alyssa diz para Bonnie que ela teve sorte.
Sorte por não ter sido estuprada. Alyssa não sabe das violências que Bonnie
sofreu.
Bonnie está sentindo uma dor
excruciante, ela pergunta a James e Alyssa “O que faço com toda essa dor?”.
Alyssa diz, também porque ela sofre, e também porque ela não sabe o que fazer
com a própria dor: “Não sei”. Mas, Bonnie encontra uma solução e aponta a arma
para o próprio queixo. A única solução é a morte. Alyssa e James não querem
mais uma morte, mais dor, mais problemas, eles impedem que Bonnie se mate.
Nisso, Alyssa conclui, quase acertadamente:
“O problema, quando se recebe
pouco amor, é não saber como é. Então é fácil ser enganado. De ver coisas que
não existem. Mas acho que mentimos para nós mesmos o tempo todo.”
Quase acertadamente porque não creio que Bonnie estava
mentindo para si mesma. Ela não sabia o que era o amor para poder mentir para
si mesma. A verdade é que Alyssa estava falando sobre si mesma. Não entrei na
história dessa personagem, mas o que se pode saber é que tampouco Alyssa sabe o
que é o amor, de seu pai, de sua mãe. Fica claro que ela mente para si mesma e
para James quando ele pergunta se ela está bem depois de terem impedido o
suicídio de Bonnie e ela responder afirmativamente. Claro que ela também não
está bem. Mas, pelo menos, ela tem a chance de viver o amor com James, dado que
ela, ao final, assume que também o ama. Óbvio que eles têm problemas de saúde
mental, mas agora tem um ao outro. Bonnie não tem mais ninguém.
É tocante quando James, apesar de
ter corrido o risco de ser assassinado por Bonnie, se preocupa e questiona as
autoridades pelo seu destino. Mas, é claro que uma mulher negra e doente mental
não vai receber a ajuda de que precisa. Podemos torcer para que ela supere o
trauma, mas todo o contexto demonstra que não. Isso porque eu nem mencionei o
homicídio culposo perpretado por ela, também na segunda temporada: também de um
abusador, que mostra o pênis para ela e diz que ela nem precisa mexer nele,
como se fosse natural. Outro cara branco. Então, é provável que o destino de
Bonnie seja o cárcere novamente.
Mesmo que seja um consolo que James
e Alyssa assumam seu amor. E, de maneira muito realista, Alyssa declare que
precise de tempo e ajuda para superar seus traumas, o final da série, depois de
uma análise mais detida, é de partir o coração. Bonnie não é vilã, ela é vítima
da falta de amor (e quando falo de amor, não é de amor romântico, é das
experiências formativas que nos permitem identificá-lo), do racismo, da
violência de gênero, das relações desiguais de poder.
Quantas de nós também não o somos?
The End of The
F***ing World é uma série britânica baseada nos quadrinhos de Charles S.
Forsman que assinou o roteiro junto com Charlie Covell.
A direção ficou
por conta de Destiny Ekaragha, Jonathan Entwistle e Lucy Tcherniak.
São duas
temporadas, de 8 episódios cada.
Classificação
indicativa de 16 anos.
Todos os
episódios estão disponíveis na Netflix.
Bruna Vasquez é Cientista Social e Pedagoga. Gosta de Drag Music a Heavy Metal, de documentário a série absurda. Anda lendo o que tem na estante de casa e sua mais nova encanação são os estudos de gênero e feministas.
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