Praia dos Ossos

 


Por Bruna Vasques


     Concordo com a Natália Almeida quando ela escreveu, em sua última postagem, que os podcasts vão dominar o mundo. Pois deveriam! 

    Muito acostumada com conteúdos audiovisuais e textuais, eu tinha certo preconceito com podcast, confesso. Não sei se a ideia de ouvir algo parecido com rádio já me enchia de tédio porque eu me lembrava do meu pai escutando futebol e  notícias lá pelos idos dos 90 e aquilo não era nem um pouco atrativo para mim. Até porque eu era criança, não gostava de futebol e não entendia as notícias. De modo que eu devia ter começado a escutar podcasts antes.

    Eu comecei a ouvir  Praia dos Ossos e não consegui parar. Escutei os quatro primeiro episódios seguidos e só parei porque não tinha mais condições de continuar e porque queria deixar mais episódios para o dia seguinte. É sensacional. Claro que, pelo tema, eu fiquei pensando uma série de coisas.

    Praia dos Ossos é um podcast documental de Branca Vianna que é presidente da Rádio Novelo e toda uma equipe imensa de pessoas muito qualificadas. O tema deste documentário em áudio não pode ser resumido ao assassinato de Angela Diniz pela arma de fogo de Doca Street na Praia dos Ossos em 1976 porque não seria justo. É muito mais do que isso: Branca Vianna e companhia quiseram contar a história de Angela Diniz através de uma extensa pesquisa que contou com muitas entrevistas com pessoas que fizeram parte da vida dela.

    Sem dar muitos spoilers porque vale realmente a pena escutar os epidósios, o caso se tornou notório pela manipulação que a defesa do assassino fez do histórico de Ângela para que ela se tornasse a verdadeira culpada de sua própria morte. Se disse que ela era lasciva, promíscua entre outras coisas e foi construída uma imagem do assassino como um homem apaixonado, que perdeu a cabeça e matou por amar demais. Ele se tornou praticamente um herói e ganhou seus minutos de fama por conta do feminicídio. No entanto, a segunda onda do feminismo no Brasil foi impulsionada também pelo caso Angela Diniz. 

    Ao contrário do que possa parecer e é difícil de explicar, Praia dos Ossos não é pesado. Claro, há momentos difíceis de ouvir: o famigerado julgamento do qual as produtoras extraíram alguns trechos, a entrevista com o assassino causa um mal-estar inevitável. Mas apesar de ainda faltarem dois episódios para o seu final, é possível afirmar tendo escutado 6 deles que as produtoras foram muito felizes em trazer de volta esse caso no sentido de que podemos ver com nossos olhos "atuais" um feminicídio que aconteceu 40 anos atrás. E quando digo feliz, não entendam mal, não é no sentido literal. Quero dizer que elas foram bem-sucedidas no seu intento de dar voz, através daqueles que realmente a amavam, à mulher que Ângela foi e que, se em 1976, não se dizia que uma mulher assassinada pelo seu companheiro foi vítima de feminicídio porque este crime não era tipificado pelo Código Penal, hoje nós temos esse tipo de crime reconhecido em sua especificidade: muitas mulheres são mortas porque são mulheres. E, claro, a maioria delas não é como Ângela Diniz, branca, da elite. Tenho consciência disso, mas ainda assim se você escutar Praia dos Ossos vai entender o que eu quero dizer.

    Mas algo me deixou muito intrigada enquanto eu ouvia os seis primeiros episódios: o fato de ser comum naquela época os homens andarem armados. Não apenas o assassino de Angela Diniz, são mencionados outros homens com quem ela se relacionou que andavam armados. Eu sei que muito homem anda armado hoje em dia, mas inevitavelmente me veio à mente a defesa que os homens brancos nossos "representantes" fazem do armamento argumentando, inclusive, que as mulheres poderiam se defender melhor caso andassem armadas. 

    Eu não vou me estender muito sobre o assunto, espero. Porque quero acreditar que não é necessário discorrer sobre o absurdo de tal convicção: de que um instrumento que provoca a morte teria o potencial de nos deixar mais seguras, nós mulheres. Quer dizer, talvez não seja necessário explicar para você que está lendo esse artigo. A verdade contudo, é que está havendo uma flexibilização do porte de armas pelo governo federal. Se o presidente inominável não tivesse o Congresso para refrear as suas medidas autoritárias, as armas estariam liberadas porque, na sua visão, a arma de fogo garante a liberdade individual do cidadão. 

    Quarenta e quatro anos após o feminicídio por arma de fogo de Ângela Diniz, a realidade atualmente, de acordo com a major Claudia Moraes, Subcoordenadora de Comunicação Social da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro e uma das organizadoras do Dossiê Mulher (em entrevista à Larissa Infante da Revista Época) é que:

    "47,2% dos homicídios cometidos foram por armas de fogo. 9,7% foram por arma branca (facas e facões). Além destes, houve também casos de asfixia, veneno, material inflamável, pedrada, paulada. 34,9% das armas não puderam ser identificadas. Em 2017, foram registrados cinco feminicídios e 15 tentativas de feminicídio por mês. A cada 5 tentativas, uma é consumada. Fora as mulheres que ficam em coma, desfiguradas, paraplégicas. 75% das tentativas de feminicídio e 57% das mortes são cometidas por companheiros ou ex-companheiros. Em relação ao local, a residência somou 52% dos feminicídios e 65% das tentativas."

    A major ainda complementa que duas entre cada três mulheres assassinadas são negras. 

    A maioria das mulheres assassinadas não são como Angela Diniz, mas seu caso é importante para pensarmos a atualidade: que a sociedade ainda é misógina e extremamente violenta com as mulheres, em particular com as mulheres negras. E também com os homens negros que são os mais assassinados nesse genocídio. 

      No Brasil, sabemos quem atira e quem é alvejado.

       Apesar de tudo, quero ressaltar que Praia dos Ossos é uma celebração da mulher que Ângela Diniz foi. Não, ela não foi uma escritora importante, artista ou jornalista. Era uma mulher branca que vivia do dinheiro que a fama e os seus companheiros lhe garantiam. Mas era uma mulher que fazia o que bem entendia, era desbocada, provocadora, viveu sua sexualidade como bem entendeu. Era bonita, divertida, inteligente, destemida. E não deveria ter morrido como morreu: assassinada pelo seu namorado porque ele se sentia ameaçado em sua masculinidade

    Pela vida das mulheres! Nenhuma a menos!


    Matérias que consultei para escrever este artigo:


https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/05/frase-de-bolsonaro-sobre-dar-armas-para-populacao-e-rejeitada-por-72.shtml

https://epoca.globo.com/quase-metade-dos-feminicidios-sao-cometidos-por-armas-de-fogo-revela-estudo-23389773

    

O podcast Praia dos Ossos, apresentado e idealizado por Branca Vianna, produção original da Rádio Novelo, está disponível abaixo (e também em outras plataformas de streaming):

https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/

E você pode dar uma conferida no trailer abaixo:





Bruna Vasques é sociológa e pedagoga. Isolada há sete meses, não vê outra alternativa que não ler, estudar, assistir, ouvir música (e podcasts mais recentemente). Trocou as redes sociais por palavras cruzadas, mas não consegue decifrar Sudoku. Ama escrever.

   


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