Sobre o amor


Por Bruna Vasques*


Este artigo é uma tentativa de pensar criticamente o amor. Porque uma cientista social em isolamento é uma alma atormentada.
O amor é lindo, não é? Bom, seria muito melhor se não existisse o patriarcado, a propriedade privada, o racismo e a objetificação de seres humanos. Mas será que dá para pensar o amor sem levar em consideração essas estruturas, esses fatos sociais? Infelizmente, não. Porque o amor não está acima de tais estruturas e fatos sociais. “Ih, lá vem ela com a tal construção social”. Claro, meu bem. Ou você acha que o amor é natural, ou melhor, a forma como as pessoas vivenciam o amor é dada, não sofre interferência da sociedade? Neste artigo, eu separei três referências completamente diferentes para pensar a questão do amor na sociedade patriarcal, racista e capitalista.
Eu gosto sempre de avisar algumas coisinhas antes de partir para o texto em si: este tema é extenso, que dá pano para a manga, então não se pretende aqui esgotar o assunto. Não se quer também estabelecer nenhuma verdade, apenas possibilitar uma reflexão, ou melhor ainda, o início de uma reflexão. Gosto de pensar que, quando eu escrevo, procuro fazer afirmações que possibilitem interrogações. Afinal, questionar é necessário. Não se muda nada sem questionamento.
As referências que utilizarei são diferentes entre si, mas cada uma traz algo para a discussão: um minidocumentário sobre a monogamia, dois vídeos educativos de uma arte - educadora e um texto de uma filósofa feminista negra. Falarei sobre o que cada uma dessas referências traz para o debate sobre o amor.
A Netflix possui uma série documental, produção própria, chamada Explained. São minidocumentários, de mais ou menos 20 minutos e cada um trata de um tema diferente indo desde maconha, orgasmo feminino até tatuagem e inteligência animal. Já assisti vários e recomendo. Esta série possui um episódio que fala sobre a monogamia. Por que eu trago a questão da monogamia para o debate acerca do amor?
Porque este documentário tem um viés muito interessante quando afirma, desde o início, que a monogamia não é algo intrínseco ao ser humano, mas foi construída socialmente e pesam, nessa construção social, os papéis de gênero e a propriedade privada. Afirma-se que o amor é um sentimento e a monogamia é uma regra que é quebrada muitas e muitas vezes justamente porque não é natural o ser humano se relacionar exclusivamente, a monogamia é uma força coercitiva no âmbito dos relacionamentos porque há mais coisas em jogo do que o próprio relacionamento ou o amor.
Eu disse que só traria três referências, mas não posso deixar de citar Simone de Beauvoir e sua obra O Segundo Sexo. É que alguns autores (assim como o próprio episódio citado da série documental Explained deixa subentendido) preconizam que o advento da propriedade privada acarreta a sujeição da mulher. Beauvoir retorna um pouco na história para dizer que a sujeição da mulher à espécie, ou seja, o fato de que ela engravidava continuamente (estamos falando das sociedades coletoras) a impedia de agir no mundo, então o privilégio biológico foi o primeiro privilégio masculino. Como a mulher engravidava, dava à luz, amamentava, ela era uma presa da espécie, sujeita à sua reprodução, enquanto o homem conquistava o mundo. Fiz essa menção apenas para deixar claro que, provavelmente, a sujeição da mulher não teve início com o advento da propriedade privada, mas que esta foi determinante para o domínio masculino.
 Com a propriedade privada, o patriarcado se afirma. Isso quer dizer que a mulher é ainda sujeita à espécie, mas agora ela está também sujeita ao domínio masculino. A mulher passa a ser como um escravo, ou seja, uma propriedade do homem. A monogamia tem aí um papel fundamental: impedir a divisão da propriedade entre filhos que poderiam ser ilegítimos. Ora, vamos pensar que quando a propriedade privada surgiu não havia teste de DNA. Logo, a única maneira de garantir que um filho ilegítimo não recebesse herança era exigir da mulher uma fidelidade completa, um controle total de sua vida. E essa monogamia é tão, mas tão social e antinatural, que se legislou sobre ela: o adultério era crime até pouquíssimo tempo atrás. E como o patriarcado protege os interesses masculinos, podia-se inclusive matar a mulher adúltera em “defesa da honra masculina”. Na verdade, ainda hoje a mulher é morta pelo marido, namorado, companheiro, ex-companheiro que não aceita uma traição ou ser deixado, abandonado. A faceta mais cruel do patriarcado é o assassinato da mulher pelo homem que ela ama ou amava.
Então, a monogamia não é aquela coisa bonita e inocente de abrir mão de todas as outras pessoas do planeta porque se encontrou a alma gêmea, o amor da vida, blá blá blá. A monogamia, em suas origens históricas e sociais, é podre porque é uma consequência da ordem patriarcal, da propriedade privada e, portanto, da desigualdade de gênero e social. Por esse motivo é preciso pensar criticamente sobre ela e o episódio “Explained: monogamy” é, na minha opinião, um excelente material para começar essa discussão.
A segunda referência que trago para esta discussão são dois vídeos da arte-educadora (ou como ela mesma se define artivista) Rita Von Hunty. Eu recomendo que assistam todos os vídeos do canal dela, Tempero Drag, porque ela faz algo que eu poderia dizer que é inédito: ela utiliza da sua persona drag queen, D. Rita, para educar politicamente a sua audiência. E ela é muito boa nisso porque seu trabalho é resultado de profundas pesquisas nas mais diversas áreas das ciências humanas. Vale muito a pena! Vamos a ela, então.
Dona Rita fez dois vídeos que ela chamou de Amor na Pandemia. É curioso que eu andava pensando muito sobre a questão da afetividade em tempos de isolamento. Parece que ela fez os vídeos para mim. Claro que não! Ela fez os vídeos porque essa questão tem afetado todo mundo e a sua audiência pediu muito! Não sou especial, diferentona, não.
Ela inicia o primeiro dos vídeos falando sobre o trabalho não-remunerado feminino, o de cuidados com a casa e com a família que ainda hoje fica, na maioria dos casos, a cargo das mulheres. Inclusive, a frente de combate ao Covid-19 é, majoritariamente, feminina. Sem o trabalho dos cuidados, a sociedade não é possível. Dona Rita quer nos falar sobre a desigualdade de gênero que ainda reina na nossa sociedade. Mas, ela vai adiante.
Para falar sobre o amor na pandemia, discorre sobre o modo como as pessoas estão se relacionando e conhecendo outras pessoas no contexto de isolamento (pelo menos aquelas que estão de fato respeitando o isolamento), que é pelos aplicativos de encontro ou de pegação, como ela mesma fala.
Dona Rita diz que a lógica do aplicativo de pegação é a mesma que a do aplicativo de compras: nós tratamos as pessoas ali como um produto, o match seria como colocar a pessoa, um ser humano, em um carrinho de compras virtual. Sabe quando a gente está no aplicativo de compra online e coloca um treco no carrinho? Então, o match é o mesmo esquema. Também ela diz que as pessoas, no aplicativo de pegação, estão procurando sexo, namorado, amizade como se esses não fossem RELAÇÕES que são construídas, mas produtos acabados que você coloca no carrinho. E não é assim que a banda toca, as relações são construídas de outra maneira e a gente meio que finge ignorar isso.
Ela traz, então, o conceito de reificação para explicar essa dinâmica social que é, muito resumidamente, quando se enxerga nas pessoas ou nas relações uma mercadoria como outra qualquer. É uma das facetas da objetificação. Vejam, quando falamos em trabalho alienado, estamos falando do trabalhador sendo tratado como mercadoria, aqui estamos dizendo sobre como tratamos a nós e aos outros como mercadorias nas nossas relações afetivas.
Só que a coisa se agrava em tempos de isolamento social: na impossibilidade de se encontrar pessoalmente, o aplicativo é a ferramenta para conhecer pessoas novas ou dialogar com quem já se conhece. E aqui encontramos um problema que a professora traz para a discussão: a falência narrativa, evidenciada pelo filósofo citado por ela, Jean-François Lyotard. Que seria isso? Segundo Rita Von Hunty, baseada em Lyotard, é que “estamos perdendo a capacidade de sustentar narrativas”. É que nós estamos ficando muito ruins, péssimos, em termos de dialogar, em termos do falar, do se abrir, do discursar, do aprofundamento das relações. A coisa está ficando feia e, em tempos de isolamento social, vai se sair melhor em termos de relacionamento afetivo quem conseguir manter um diálogo, uma narrativa mesmo através do aplicativo. Porque quando não se tem o toque, o sexo, o sair e fazer coisas juntos, o viajar juntos e tantas coisas que fazíamos com os nossos parceiros antes do isolamento, o que fica é o diálogo, a narrativa, o discurso. E qual a chance de sustentar uma narrativa com 327 matches? Desconfio que não muita. Mas e quem já está em um relacionamento? Rita explica.
No segundo vídeo, Rita Von Hunty cita o psicólogo e professor da Universidade de Washington John Gottman e as conclusões de um experimento que ele fez com casais recém-casados: ele colocou vários desses casais, com seu consentimento, para viverem em um apartamento por um período de tempo e os seus diálogos foram gravados. Depois de certo tempo, ele voltava para ver se o casal estava ainda junto. Sua conclusão foi de que permaneceram juntos por mais tempo os casais que têm reações positivas a interações cotidianas. Sabe quando o seu parceiro é aquela pessoa que reage negativamente a um comentário bobo seu? Então, esse relacionamento tem grande chance de não vingar. Ou quando o parceiro vem sempre com aquele “uhum” e você sente que tomou um balde de água fria? Então, também é bem provável que vá por água abaixo. Mas sabe quando você e seu parceiro têm aquela interação boa, em que você fala qualquer coisinha e o outro reage animado, vê uma coisa boa naquilo, se empolga, propõe, continua a conversa? Então, essa relação aí capaz que dê mais certo, viu? Sortudo você.
Isso tem relação com o que foi dito acerca da sustentação da narrativa: os parceiros dialogam, conversam, reagem de maneira positiva às colocações do outro. Bonito, não é? Bonito seria se fosse a regra, e não a exceção. Porque a objetificação ou a reificação faz com que a gente desista dessa conversa, dessa pessoa, aperte o X, bloqueie, jogue fora, troque por outra mais nova, como se o ser humano fosse outra COISA qualquer. E nisso há dor, sofrimento, rejeição, auto-estima baixa e culpa, quando várias coisas realmente ruins poderiam ser resolvidas com diálogo. Estamos errando aí, viu?
Nos parágrafos acima, só citei algumas das ideias que Rita Von Hunty articula nos seus dois vídeos maravilhosos. Por isso, vou deixar os dois vídeos aqui na íntegra para que vocês assistam. Recomendo demais.






A terceira referência que trago para a nossa discussão sobre o amor é a teórica feminista estadunidense bell hooks (escrito em minúsculas, mesmo) que tem contribuído grandemente para o pensamento sobre as opressões partindo de um viés interseccional, ou seja, gênero, classe e etnia como um conjunto. Explico. Vamos pensar na mulher negra e trabalhadora: ela não é oprimida apenas por ser mulher OU negra OU trabalhadora. Ela é oprimida por ser as três coisas. É a maneira mais resumida que consigo explicar.
Falarei aqui sobre o texto de hooks que foi traduzido como Vivendo o amor e não trata do amor romântico, mas do amor em si, daquele que pode se expressar entre pais e filhos, entre parceiros e da mulher consigo mesma porque, afinal, ela é feminista.
Ela inicia dizendo que o povo negro é um povo ferido e que essa ferida dificulta a sua capacidade de amar. O amor é um ato de resistência para o povo negro. Isso porque, durante muito tempo, o amor era perigoso para essas pessoas.
Pensemos no período da escravização: será que era possível sentir o amor quando a separação de um ente querido era uma realidade que pairava sobre as pessoas escravizadas? Quando se vivia violência o tempo todo? Sabemos que os casais eram separados, filhos eram tirados dos braços de suas mães porque as pessoas negras, naquele contexto, eram vistas não como mão-de-obra. Um trabalhador assalariado é uma mão-de-obra, a pessoa escravizada era vista como uma coisa, não era vista como um ser humano, como um sujeito, com sentimentos, emoções, desejos. E isso tem consequências para o povo negro até os dias atuais: o racismo que impede que a pessoa negra ame e seja amada, em particular a mulher negra.
Aquele contexto levou a pessoa negra a não praticar o amor pelo outro, nem por si mesma, porque o amor era uma fraqueza, uma vulnerabilidade. A escravização demandava a força e a solidez que são primordiais para a sobrevivência do povo negro. De acordo com hooks, o amor, o sentimento, a emoção são ainda reprimidos por esse povo.
O texto de bell hooks é tocante porque nos fala não sobre a importância do amor, mas da sua necessidade. O amor é necessário. O amor cura. Não é uma necessidade de ordem material ou de direitos, é uma necessidade para a vida como um todo que, pelo que ela nos diz, é também um privilégio branco. Enquanto a criança branca chora e recebe um consolo, quando não um presente, da criança negra se chama a atenção e lhe é exigido força, porque ela sempre tem que estar preparada para as dificuldades, para as injustiças. Se a criança negra recebe amor, é capaz que não tenha forças para lutar e se manter firme perante as dificuldades, as injustiças, a violência. Isso é consequência do racismo.
A mulher negra não conhece o amor, principalmente aquele que deveria sentir por si mesma. Ela também tem que ser forte, decidida e, muitas vezes, aceita a ausência de amor na sua própria casa. Acaba por não se amar, porque não considera importantes a suas necessidades emocionais, principalmente se for bem-sucedida na esfera pública. O racismo é tão gritante na nossa sociedade que o amor de uma mulher negra por si mesma é visto como fraqueza ou artigo de luxo. Segundo bell hooks, é algo sobre o qual não se fala a respeito. Mas ela não se cala:

[….] A ideia de que o amor significa a nossa expansão no sentido de nutrir nosso crescimento espiritual ou o de outra pessoa, me ajuda a crescer por afirmar que o amor é uma ação. Essadefinição é importante para os negros porque não enfatiza o aspecto material do nosso bem-estar. Ao mesmo tempo que conhecemos nossas necessidades materiais, também precisamos atender às nossas necessidades emocionais. Gosto muito daquele trecho da bíblia, nos ‘Provérbios’, que diz: ‘Um jantar de ervas, onde existe amor, é melhor que uma bandeja de prata cheia de ódio’.
Quando nós, mulheres negras, experimentamos a força transformadora do amor em nossas vidas, assumimos atitudes capazes de alterar completamente as estruturas sociais existentes. Assim poderemos acumular forças para enfrentar o genocídio que mata diariamente tantos homens, mulheres e crianças negras. Quando conhecemos o amor, quando amamos, é possível enxergar o passado com outros olhos; é possível transformar o presente e sonhar o futuro. Esse é o poder do amor. O amor cura" (p. 11-12).

O amor cura. Mas esse amor curativo do qual bell hooks fala tão lindamente é o amor genuíno, que pode existir entre pai e mãe para o filho ou filha, entre amigos, entre parceiros, o amor que podemos ter por nós mesmos.
Mas o amor, em uma sociedade patriarcal, racista, capitalista, é um privilégio branco, que é idealizado e mercantilizado pelo capitalismo, um amor que logo se torna ódio e justificativa para controlar a vida de mulheres, principalmente a da mulher negra, um amor que aprisiona e mata mulheres.
Cumpre pensarmos em como as relações de poder atravessam os nossos relacionamentos afetivos para que possamos transformá-los. Quem sabe um dia poderemos nos amar de verdade?


O link para o texto Vivendo o amor de bell hooks na íntegra:
http://www.olibat.com.br/documentos/Vivendo%20de%20Amor%20Bell%20Hooks.pdf 

São só 12 páginas e vale muito a pena!

O episódio Monogamy, explained está disponível na Netflix, 18min, classificação indicativa de 14 anos.
Também foi mencionada Simone de Beauvoir, segue referência:
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo: Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

*Bruna Vasques é Cientista Social e Pedagoga.

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