Hannah Gadsby e o Riso dos Outros



Por: Bruna Vasquez*
Há alguns anos houve um estouro do stand up comedy e de vários canais de humor e os comediantes parecem ter ganhado um grande poder desde então: o poder de influenciar pessoas. Não que não fossem influenciadores antes, mas a internet deu uma visibilidade sem precedentes a essas figuras do entretenimento. Isso tem pontos positivos e negativos, como a maioria dos fenômenos. 
Rir é bom. Fato. Mas, essa é uma discussão que não pode terminar aqui, nessa simples constatação. Porque às vezes rir tem um custo ou, melhor, um alvo, uma vítima. Então, será que se deve provocar esse riso não importa que este custe a dignidade de alguém? Porque o riso é bom, mas fere também.
As pessoas confundem algumas coisas. Liberdade de expressão com licenciosidade para ofender, discriminar e expor ao ridículo, por exemplo. Isso, necessariamente, denota um posicionamento político: a arte não é neutra, nunca foi, nunca será. Não é questão de opinião: “foi só uma piada, uma brincadeira”. Sim, às vezes fazemos, no cotidiano, colocações infelizes, piadas de mau gosto, compartilhamos algum vídeo duvidoso, damos aquela bola fora. Por mais cuidadosos que sejamos, às vezes escorregamos e não é nossa intenção sermos depreciativos. Mas, podemos ser depreciativos mesmo sem que essa seja a intenção, então devemos ficar também atentos.
No entanto, acredito que uma pessoa que faz comédia profissionalmente e, com isso pode ganhar rios de dinheiro, escolhe um lado. Não é por inocência ou porque falou sem pensar que acaba lançando uma piada racista, machista, homofóbica. As comédias de stand up são preparadas, são textos escritos, então, só pode ser intencional. Alguns querem provocar o riso da maneira mais fácil, representando os preconceitos da sociedade, escolhendo a forma mais baixa de humor e se assumindo como um “espelho” da sociedade acabam depreciando aquilo que foi e é depreciado histórica e socialmente. Não contentes, colocam a culpa na audiência. 
Não adianta falar em censura porque ninguém analisa esses textos antes, ninguém proíbe algum comediante de fazer uma piada machista, homofóbica, racista. Acontece que hoje em dia essas coisas não passam mais batido e isso é realmente ótimo.  Diz-se o que pensa e depois sofre-se as consequências. Ou não! Afinal, já vi comediante falar algo como: “Me processa. Eu ganhei não seis quantos mil reais (acho que eram mais de 200mil) de tal empresa”. Sim, tem esse lado também.
É sobre esse assunto que o documentário O Riso dos Outros (2012) fala: Laerte, Antonio Prata, Nany People, Ana Maria Gonçalves, Jean Willys, Danilo Gentili, Rafinha Bastos, Caruso, André Dahmer e muitos outros falam sobre do que e porque rimos. Eu já havia assistido alguns anos atrás e assisti hoje de novo porque tinha a intenção de escrever algo a respeito. Mas, daquela vez que assisti não tinha me ocorrido, como me ocorreu hoje, que existe uma outra confusão: da falta de noção, empatia, ética e humanidade com coragem. Confusão essa que, tampouco, é neutra.
“Fulano é corajoso, fez uma piada racista”. “Sicrano enfrenta o politicamente correto porque  fez graça com os LGTBQIA+”. Não, parça. “Fulano” e “Scirano” são criminosos mesmo porque homofobia e racismo são crimes. E além de tudo, covardes porque se valem de dinheiro e influência para se proteger e porque tâm um monte de gente pronta para defendê-los. O mundo está careta demais, dizem. Já eu não vejo nada além de conservadorismo em uma piada que se vale de humilhar certas categorias de pessoas, socialmente sujeitas ao poder, para fazer rir e para ganhar dinheiro, um dinheiro ganho às custas dos outros.
Corajosa de verdade é Hannah Gadsby em Nanette (2018). Eu prometo que vou tentar elaborar a grandiosidade desse show de stand up, mas receio que não conseguirei porque é bom demais para ser descrito. Precisa ser visto.
Hannah Gadsby é perspicaz demais nas suas piadas: ela entende como a dinâmica da coisa funciona pois está há mais de dez anos na cena: Gadsby cresceu na Tasmânia, ilha australiana onde a homossexualidade era crime até 1997 e faz pouco tempo que ela saiu completamente do armário. Ela faz piadas inclusive sobre a comunidade LGBTQIA+ sem depreciá-la, mas com base no fato de que ela não se encaixa no estereótipo de lésbica. Não é o estereótipo o alvo de suas piadas, mas a sua própria dificuldade em se enquadrar na minoria. Não é por isso que ela corajosa, no entanto.
Ela é corajosa porque, em determinada altura, ela assume que talvez seja a hora de desistir da comédia. Ela se sente cansada de fazer humor autodepreciativo, de rir de si mesma, de contar uma versão de sua história de um modo que fará as pessoas rirem e não pensarem. Ela diz:

Porque vocês entendem o que a autodepreciação significa quando vem de alguém que já existe à margem? Não é humildade. É humilhação. Eu me coloco pra baixo pra poder falar, pra pedir permissão pra falar. Simplesmente não vou mais fazer isso. Nem comigo, nem com ninguém que se identifica comigo. Se isso significar o fim da minha carreira na comédia, que seja.

Falando assim, nem parece stand up comedy. Mas, o fato é que a gente ri muito com ela. E também pensa e se emociona porque Hannah Gadsby compartilha conosco a sua história. Tem gente que fala que “rir é o melhor remédio”, ela quer mostrar que o que cura são histórias. E é extremamente bem-sucedida no intento de contar a sua história de maneira apropriada, como ela mesma diz, porque até então, ela transformou os sofrimentos advindos do fato de ser lésbica e ser uma mulher não-feminina em piada.
Hannah Gadsby pega pesado com os homens, mas porque eles foram durante sua vida seus opressores. Ao contrário das piadas que se fazem com as mulheres, que reforçam estereótipos (em O Riso dos Outros aparecem algumas piadas extremamente ofensivas), o alvo de Gadsby não é um ou outro homem: ainda que seja muito direcionada à masculinidade hegemônica, o seu alvo é o patriarcado em si. Ela não procura, a todo o custo, o riso da audiência. Porque em vários momentos ela fica muito séria e até muito brava como quando ela o diz o seguinte a respeito de suas piadas com os homens:

Mas, a história é como vocês contam. O poder pertence a vocês. Se não sabem lidar com críticas, aceitar uma piada ou resolver suas tensões sem violência, devemos questionar se são dignos da tarefa de controlar tudo. Eu não odeio os homens. Mas, tenho medo dos homens. Se sou a única mulher numa sala de homens, eu tenho medo. Se você acha isso incomum, é porque não conversa com as mulheres de sua vida.

Ela diz, em alguma altura do show:“Ninguém vai deixar essa sala uma pessoa melhor”. Não poderia estar mais enaganada.

É preciso dizer que Hanna Gadsby não desistiu da comédia e seu novo show, Douglas, estreia na Netflix nessa semana, dia 26 de maio mais precisamente.

Enquanto isso, façam o favor a si mesmos de assistir Nanette (2018) na mesma plataforma, Netflix. Aprox: 1h10 de duração. Classificação indicativa de 16 anos.

O Riso dos Outros (2012), da TV Câmara, está disponível no Youtube:



https://www.youtube.com/watch?v=GowlcUgg85E 

Tem que colocar TV CÂMARA como AUTOR de O Riso dos Outros por conta dos direitos autorais (não queremos problemas, afinal).


Bruna Vasquez é Cientista Social e Pedagoga. Gosta de Drag Music a Heavy Metal, de documentário a série absurda. Anda lendo o que tem na estante de casa e sua mais nova encanação são os estudos de gênero e feministas.






 

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